Pra quem é que vou deixar / se fizesse um testamento, / minhas calças remendadas, / o meu céu, minhas estrelas, / que não me canso de vê-las / quando ao relento, deitado, / deixo o olhar perdido / distante, no firmamento?
Pra quem é que vou deixar / minha camisa rasgada, / as águas dos rios, dos lagos, / águas correntes, paradas, / onde às vezes tomo banho?
Pra quem é que vou deixar / vaga-lumes que em rebanhos / cercam meu corpo de noite / quando o verão é chegado?
Pra quem é que vou deixar / todo o ouro que me dá / o sol que vejo nascer / quando acordo na alvorada? Os meus bandos de pardais, / que ao entardecer, nas árvores, / brincando de esconde-esconde, / procuram se divertir?
Pra quem é que vou deixar / estas folhas de jornais / que uso pra me cobrir? / Meu chapéu todo amassado, / onde escuto o tilintar / das moedas que me dão / os que têm alma boa, / os que têm bom coração?
Pra quem é que vou deixar / o grande estoque que tenho / das palavras “Deus lhe pague”? E todas as folhas de outono / que trazidas pelo vento / vêm meus pés atapetar?
Pra quem é que vou deixar / minhas sandálias furadas / que pisaram mil caminhos / estradas por onde andei / em andanças vagabundas? Minhas saudades profundas / dos sonhos que não sonhei / para quem é que vou deixar?
Pra quem é que vou deixar / os bancos dos meus jardins / onde durmo e onde acordo / entre rosas e jasmins? E todos os raios de luar / que beijam as minhas mãos / quando num canto da rua / eu as ergo em oração?
Pra quem é que vou deixar / meu cajado, meu farnel / e a marca deste beijo / que uma criança deixou / em meu rosto, perguntando / se eu era Papai Noel?
Testamento não farei! / Agora estou resolvido: / o que tenho deixarei / para qualquer outro mendigo / rogando a Deus que o faça / depois que eu tiver morrido / tão feliz quanto eu sou.”
AUTOR: Lydia Michalick/PLANETA AZUL
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